Carona de Palavras
Silêncio no Rádio, Voz no Coração
… a vida ainda vale a pena, um gole de cada vez.
Carona de Palavras
“Batidas na porta da frente
É o tempo
Eu bebo um pouquinho pra ter
Argumento
Mas fico sem jeito calado, ele ri
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar
E eu não sei”
O feriado já tinha passado, mas a cidade ainda respirava devagar. São Paulo andava como quem carrega uma ressaca de alma ~ lenta, pensativa. Era 2 de maio, mas pairava no ar aquele espírito suspenso dos dias que seguem algo que foi intenso, quase sagrado: um tempo entre o fim e o recomeço.
Naquele dia, o rádio era meu único interlocutor. Companheiro fiel, ele costura minhas emoções, preenche meus vazios e mantém o mundo girando, mesmo quando tudo pede pausa. A locutora que sempre ouço tem uma voz que chega antes das palavras ~ inunda o carro, o peito, o tempo. Amiga das antiga, casada com um publicitário apaixonado por vinhos, juntos mantêm um canal no Instagram onde falam de viagens, sabores e lugares bons de se estar. Como se quisessem nos lembrar: a vida ainda vale a pena, um gole de cada vez.
Aceitei uma corrida pela manhã. Saída da Liberdade, parada rápida na Consolação, destino final na Vila dos Remédios ~ nomes simbólicos em uma cidade que parece inventar poesia até no mapa. Ela entrou apressada, três malas e um olhar perdido. Ajudei com as bagagens e, ao retornar ao carro, desliguei o rádio por reflexo. Silêncio respeitoso. Mas ela, gentil, pediu: “Pode deixar ligado, sim. A música sempre ajuda.”
Seguimos.
Pelo retrovisor, notei uma lágrima discreta no canto do olho esquerdo ~ o mesmo lado por onde vigio meus próprios fantasmas. A música tocava, e eu sabia que certas dores não se alcançam, apenas se acompanham.
Foi então que o rádio anunciou: Nana Caymmi havia nos deixado.
Ela virou para mim, surpresa. “Como assim?”
Expliquei que a doença vinha avançando há meses. Talvez fosse justo dizer que ela enfim descansou. Mas não sem deixar sua voz gravada no mundo ~ e em nós. Ainda comentávamos isso quando, como se guiado por alguma força maior, começou a tocar exatamente uma das músicas dela que ela mesma acabara de mencionar.
Ela cantarolou baixinho. E eu, em silêncio, deixei que a melodia conduzisse o resto do caminho.
Foi então que ela disse: “triste, muito triste… Assim que ouvi a notícia, essa música veio à minha mente, junto com o som inconfundível da sua voz. Ela cantava com toda a alma!”
Naquela manhã de 2 de maio, que fingia ser ainda feriado, o tempo suspendeu sua pressa. Os carros, os passos, as palavras… tudo parecia esperar por algo que só a música poderia anunciar. E foi assim que seguimos: sem dizer muito, mas dizendo tudo.
Nossos ídolos estão partindo, sim. Um a um, como estrelas que se apagam em plena madrugada. As canções que embalaram nossas alegrias agora repousam em vinis, fitas K7 empoeiradas, ou em playlists que soam como homenagens tardias.
Mas há algo que nem a morte consegue silenciar: a memória que canta. Guardamos no peito os refrões que nos formaram ~ cada nota, verso, timbre. Tornaram-se parte de nós. E seguimos, sem perceber, cantando para manter vivos aqueles que nos ensinaram a dançar, mesmo nas dores.
Ela desceu na Vila dos Remédios, mas seu destino é a cidade de Avaré. Antes, passamos pela Consolação, numa jornada que começou na Liberdade. Ainda há muito chão pela frente, e espero que ela tenha músicas no celular, algo que entre nos seus ouvidos e traduza em notas o que as palavras não conseguimos dizer.
Eu li seus pensamentos ~ não por mágica, mas porque uma música, vinda do rádio, entregou tudo. Foi a melodia que me mostrou o que ela sentia. O rádio… ele virou meu caminho até ela. Foi ele quem a tornou minha musa.
E enquanto houver uma canção no ar, a memória vai continuar cantando. Mesmo em silêncio, mesmo de olhos fechados, ela seguirá viva ~ dentro de nós, em cada acorde que lembra quem amamos, o que vivemos, o que nunca vamos esquecer.
O rádio continua aceso.
E enquanto houver música, haverá lembrança.
E enquanto houver lembrança, ela continuará me inspirando.
