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A vida em São Paulo não espera. É pressa e cansaço misturados com esperança. Eu já tinha me acostumado com isso, depois de tanto tentar a sorte por aqui, vindo de Uberlândia, pulando de um trabalho para outro, lavando pratos, limpando carros, fritando hambúrguer. Mas tem dias em que a cidade parece querer testar até os mais calejados.
Naquele dia, minha mãe tinha uma consulta médica. Eu precisava levá-la. O tempo escorria feito areia entre os dedos e, como sempre, o trânsito estava impossível. Ônibus lotados, metrô um formigueiro humano, e a solução mais sensata foi chamar um carro de aplicativo. Foi assim que conheci Antônio Ivo.
Desde o primeiro instante, ele parecia diferente. Não era só mais um motorista no meio da correria de São Paulo. Era daqueles que puxam papo fácil, que transformam um trajeto comum em uma conversa de bar ~ sem precisar de cerveja.
Enquanto o carro se arrastava no trânsito infernal, eu já esperava a sinfonia de buzinas, xingamentos e impaciências habituais. Mas Antônio Ivo não parecia se abalar. A cada fechada que levava, sorria de canto e dizia, como se fosse um mantra:
— Desembréia, meu amigo, e segue teu caminho.
A vida em São Paulo é como uma cebola: cheia de camadas – e, inevitavelmente, algumas vão te arrancar lágrimas.
Frei e-uBer
Primeiro, eu ri. Minha mãe riu. Mas, de algum jeito, aquela frase ficou na minha cabeça. Como um conselho que a gente recebe sem pedir, mas que chega na hora certa.
Depois da consulta, segui a vida. Mas “desembréia” não me largava. Eu escutava aquilo no metrô, na fila do supermercado, no vento que batia no rosto enquanto eu caminhava pela cidade. Parecia que a vida inteira eu estava empacado, tentando abrir portas que não eram pra mim. E agora, um desconhecido me entregava uma resposta tão simples: libera. Segue.
E segui. Pelo menos até o dia em que tudo desmoronou.
Um mês depois, fui preso.
Uma mulher foi assaltada no Largo da Batata, em Pinheiros. A descrição que ela deu coincidiu com a minha aparência. A foto que mostraram a ela era a minha. Talvez tirada de alguma rede social, talvez ela tenha me visto em algum dos restaurantes onde trabalhei. Sei lá. O que sei é que, de um instante para o outro, minha vida virou pó.
Fui esquecido. Quem um dia me chamou de amigo apagou meu nome sem remorso. Minha família se desfez de mim como quem se livra de um peso. E assim fiquei: sozinho. Mas na solidão, fiz uma nova amizade com Deus.
Seis meses. Seis meses para provar que eu não era culpado.
E foi ali, na cela fria e sem promessas, que a desembréia começou a fazer sentido. Nas páginas da Bíblia que eu lia como quem busca um norte, nas conversas baixas entre os presos, no silêncio espesso das madrugadas, onde a única pergunta que sobrava era: por quê?
Talvez porque certos caminhos só se revelem quando não há mais para onde ir.
Não guardei mágoas. Não me deixei consumir pelo ódio. Apenas aprendi a rezar. E, em cada oração que fiz e ainda faço, peço a Deus que tenha misericórdia, que acalme os corações, que faça com que aqueles que cruzaram meu destino encontrem a paz e sigam seus próprios caminhos.
E, quem sabe, um dia também embarquem na Desembréia de Deus, pegando carona com o Frei e-uBer.
Foi ali que entendi: talvez o caminho não fosse sobre abrir portas, mas sobre parar de insistir naquelas que nunca abririam.
Quando saí da prisão, voltei para a rua, mas com outro olhar. Agora, ao invés de só dirigir, eu ouvia. Transformei meu carro em algo mais do que um meio de transporte. Meu veículo virou um confessionário sem julgamentos, um lugar onde as histórias dos passageiros se misturam às suas dores e esperanças. Eu prego, mas sem impor. Converso, sem ser monossílabo ou cansativo. E, pouco a pouco, fui aprendendo a traduzir o mundo ao meu redor — e a ajudar quem também busca respostas.
Foi assim que nasceu a Desembréia de Deus. Não como um conceito planejado, mas como um sussurro da vida.
Porque, no fim das contas, a gente só precisa disso: desembravear e seguir.