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…o hoje sempre me oferece algo: uma chance de aprender, de recomeçar, ou de apenas contar ~ com indignação e esperança ~ mais uma estória.
O mesmo banco que recebeu orações de alívio foi encharcado por descaso.
É difícil não se indignar. Quando erram comigo, sou punido. Quando faço além do esperado, ninguém percebe. Tem dia que parece um tribunal injusto: só há réu, nunca juiz; só acusação, nenhuma defesa. Dois pesos. Nenhuma medida justa.
Essa frase virou meu mantra desde que comecei a rodar por São Paulo a bordo da “Desembréia de Deus”. Repito como quem busca fôlego no meio do caos ~ uma oração silenciosa entre um semáforo fechado e uma buzina impaciente. Mas hoje… hoje esse mantra foi posto à prova como nunca. E o que restou foi isso aqui: minha indignação transformada em palavras, como quem escreve pra não explodir.
Logo cedo, peguei uma passageira atrasada para sua aula de spinning. O endereço dela era daqueles que parecem ter sido desenhados por um arquiteto sádico: vila com três entradas idênticas, numeração invisível, GPS desnorteado. Ela já começou o trajeto me absolvendo ~ como se todos nós, motoristas, fôssemos culpados preventivamente por qualquer atraso, erro ou imprevisto. Culpados por existir no trânsito de São Paulo.
E como se fosse pouco, o universo caprichou na ironia: um carroceiro decidiu estacionar bem no meio da rua, bloqueando a passagem com sua carroça de recicláveis. A rua virou um teste de paciência em tamanho real. Dei a volta no quarteirão, informei a passageira, mas ela nem se mexeu ~ imersa no celular, no seu universo de notificações, likes e indiferença.
Segui tentando, como sempre. Mas o destino, incansável em sua criatividade, preparou mais um desafio: o acesso ao túnel estava bloqueado. E aí cometi meu grande erro ~ não a informei da mudança imediata. Optei por improvisar uma rota alternativa, que nos custou, no máximo, uns dez minutos a mais. Nada absurdo, mas tempo, nesta cidade, é ouro quando se está atrasada para o spinning.
Felizmente, o valor da corrida já estava fixado. Um pequeno alívio num dia que parecia feito sob medida para testar meus limites. E vale dizer: ela não teve nenhum prejuízo financeiro. Nenhum centavo a mais. Apenas ~ e só talvez ~ dez minutos de atraso. Isso, claro, se considerarmos que o caminho anterior teria sido mais rápido, o que ninguém pode garantir. Porque no trânsito de São Paulo, até o GPS tem dúvidas.
Quando ela desceu, desejou um “ótimo dia” com um sorriso genérico, daqueles que a gente percebe que é só fachada. E eu já sabia o que viria. Algumas horas depois, lá estava: a notificação da plataforma, o infame M.A.S. – a reclamação disfarçada de “feedback”.
E é aí que me revolto. Não com os imprevistos ~ com eles eu lido. Mas com a falta de medida justa. Nós, motoristas, somos julgados por um critério que só existe para um lado. Ela se atrasa, se perde, trata com desdém ~ mas a falha, no fim, é minha. Dois pesos, nenhuma medida correta.
Mas o dia não acabou aí.
Duas corridas depois, a vida resolveu mostrar outro lado da moeda. Uma mãe cadeirante, acompanhada da filha e de uma prima, precisava ir ao médico. Quebrei o protocolo sem pensar ~ desci, ajudei a senhora a entrar, dobrei a cadeira com cuidado e acomodei tudo no porta-malas.
Elas mal agradeceram ~ um aceno apressado, quase automático ~ e seguimos viagem. No meio do trajeto, a prima, sem qualquer cerimônia, deixou escapar uma garrafinha d’água que decidiu se abrir por conta própria. E assim, do nada, meu banco traseiro se transformou numa piscina improvisada ~ porque, aparentemente, até a água resolveu testar minha paciência nesse dia.
“Desculpa aí… olha, vai ter que secar o banco, viu?”, disse ela, no tom mais gelado que a água derramada. Nenhuma oferta de ajuda, nenhum gesto de empatia, nem um trocado para o lava-rápido ~ só a constatação indiferente, como se o problema tivesse surgido do nada e caído no meu colo. Fiquei ali, com meus panos velhos do porta-malas na mão, encarando o banco encharcado e a constatação do fim precoce do meu dia. Corrida encerrada. Resignação ativada.
E enquanto esfregava o banco, lembrei daquele Domingo de Páscoa em que fiz uma manobra que evitou um acidente certo. Duas passageiras no banco de trás, no susto, rezaram uma Ave-Maria e um Pai-Nosso ali mesmo. Saíram agradecidas, leves. A “Desembréia de Deus”, como chamo essa minha missão ambulante, parecia voar naquele dia.
Hoje, o mesmo banco que recebeu orações de alívio foi encharcado por descaso.
É difícil não se indignar. Quando erram comigo, sou punido. Quando faço além do esperado, ninguém percebe. Tem dia que parece um tribunal injusto: só há réu, nunca juiz; só acusação, nenhuma defesa. Dois pesos. Nenhuma medida justa.
E mesmo assim, sigo. Frei e-uBer. Entre bênçãos e banhos de água fria, aprendo que no banco de trás cabem muitas histórias. Algumas molham o estofado, outras lavam a alma. E eu sigo, porque o hoje sempre me oferece algo: uma chance de aprender, de recomeçar, ou de apenas contar ~ com indignação e esperança ~ mais uma estória.
Afinal, como diz meu mantra:
o ontem já se foi (com os julgamentos indevidos),
o amanhã ainda não chegou (mas talvez traga justiça),
e o hoje… ah! o hoje ainda é meu.