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Nem um “bom dia”, nem um “por favor”. Apenas apontou para um lugar proibido e ordenou: “Estacione ali”.
Enquanto dirigia, ouvi histórias de noites em UTIs, médicos que viraram anjos de jaleco, e até da época em que Enrico ~ ex-professor de literatura ~ vendia resumos de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” para pagar remédios. “Machado de Assis não cura ninguém, Frei, mas pelo menos dá esperança”, ele riu, segurando a mão do filho.
Na volta, parado no congestionamento da Anchieta, refleti: coincidência mesmo foi ter pegado a “Dra. Vaidade” e o “Prof. Esperança” no mesmo dia. Um me ensinou que título não é caráter; o outro, que doutorado não se ganha na universidade, mas na vida.
São Paulo é uma caixa de surpresas. E, às vezes, das surpresas que a gente quer devolver com nota fiscal. Mas como diz o ditado: “Coincidências? Não acredito. Mas pero que elas ai, há elas “aí”, sim!, ah, isso insistem!”.
O dia começou com o aplicativo apitando: “Corrida para a Rua Dona Veridiana, Vila Buarque”. Local conhecido por ser o paraíso dos motoboys e o inferno dos motoristas. Quando cheguei, era como se todos os carros da cidade tivessem combinado de fazer uma flash moto buzinante em minha homenagem. “Xinga minha mãe à vontade, pessoal! Ela em casa, com certeza, tá rindo de vocês lá da sua cadeira fazendo tricô”, pensei, enquanto esperava pacientemente ~ ou melhor, enquanto fingia ser uma estátua zen no meio do caos.
Eis que surge Paula. Não era Dona Paula, nem Senhora Paula, mas Dra. Paula ~ título que ela mesma se autoconcedeu ao telefone enquanto entrava no carro com a sutileza de um elefante numa loja de cristais. Com uma bolsa Louis Vuitton no braço, outra pequena bolsa de negócios na outra mão, celular apoiado no ombro, e uma aura de quem acredita que o mundo orbita seu umbigo [provavelmente coberto por um cinto de grife], ela nem se deu ao trabalho de me cumprimentar. Nem um “bom dia”, nem um “por favor”. Seguimos direto para o Hospital das Clínicas. Entre uma ligação e outra, essa residente ainda achou tempo para quase me fazer levar uma multa ~ com a única palavra que me dirigiu, apontou para um local proibido e disparou: “Estacione ali.”
Olhei para o local indicado. Havia um agente da CET sorrindo, não de simpatia, mas de “vou ganhar uma promoção hoje”. Respondi com minha melhor cara de “Você tá ligada que isso aqui é multa na certa, né?”, mas ela revirou os olhos ~ ou melhor, os óculos escuros, já que nem isso dignou a tirar ~ e repetiu: “É ali, DOUTOR Matheus não vai esperar!”. E eu lá sei quem é esse tal de Matheus?
[Aqui, uma pausa para um PS do Frei e-Uber: Amados, “doutor” é título de quem suou em tese de 300 páginas, não de quem faz cursinho de 6 meses no Instagram. Mas enfim, cada um com suas vaidades…]
Convencido de que debater ética acadêmica com alguém que trata o carro alheio como porta de geladeira seria inútil, segui em frente. Ela desceu, bateu a porta com força suficiente para acordar São Pedro, e sumiu. Fiquei ali, olhando para o vazio, me perguntando se algum santo tinha me castigado por rir demais da piada das enzimas.
Mas São Paulo, essa velha conhecida dos reveses, sempre coloca um anjo no caminho logo após o demônio.
Ainda mal recuperado da última corrida, o aplicativo tocou novamente: Viagem longa, sem garantias de volta. Algo em mim insistia: ‘Aceita, Frei. Se já enfrentou a Doutora do Apocalipse, agora é hora de um resgate moral’.
Mais à frente, na mesma calçada, em um ponto reservado para estacionar, aguardava-me ‘Ângellus, 20 anos, destino: São Bernardo do Campo’. Uma longa viagem de 58 minutos, sem certeza de retorno. Mas, com o coração apertado e sem o meu chá habitual, resolvi aceitar. De longe, já podia ver o cansaço nos olhos dos passageiros, mesmo de dentro do carro.
Ao estacionar, encontrei Enrico e seu filho Ângellus. Enrico, com olheiras profundas e camisa amassada, carregava uma mochila cheia de livros e uma determinação que brilhava mais que o desgaste. Ângellus, frágil como um passarinho, ostentava um sorriso que desafiava qualquer prognóstico, como se dissesse: “Aqui estou, firme e forte, apesar de tudo”.
“Faz 15 anos que ele passou por um transplante duplo de pulmão,” Enrico me contou, enquanto Ângellus dormia no banco de trás. “Agora estou cursando medicina. Quero entender o que o salvou… e retribuir a dívida com os verdadeiros heróis.”
Enquanto dirigia, ouvi histórias de noites em UTIs, médicos que viraram anjos de jaleco, e até da época em que Enrico ~ ex-professor de literatura ~ vendia resumos de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” para pagar remédios. “Machado de Assis não cura ninguém, Frei, mas pelo menos dá esperança”, ele riu, segurando a mão do filho.
Na volta, parado no congestionamento da Anchieta, refleti: coincidência mesmo foi ter pegado a “Dra. Vaidade” e o “Prof. Esperança” no mesmo dia. Um me ensinou que título não é caráter; o outro, que doutorado não se ganha na universidade, mas na vida.
E Ângellus? Bom, ele acordou no fim da viagem e me deu um adesivo de “Herói sem Capa” que ganhou no hospital. Colei no painel do Desembréia de Deus, bem do lado do terço. Porque, no fim das contas, São Paulo é assim: um lugar onde você pode encontrar de tudo, menos monotonia.
P.S.: Dra. Paula, se um dia ler isso, saiba que seu título acadêmico está te esperando aqui no meu carro. Traga um café, e a gente conversa. 😉
Frei e-uBer ~ motorista de almas, crítico de títulos falsos e fã número 1 de anjos de jaleco.~