Bom dia! Cumprimentei meu novo passageiro que acaba de se acomodar no banco traseiro, bem ao alcance de meus olhos, pelo retrovisor.
Nem toda dor é constante. Nem toda foto é pra sempre na estante. Foi assim que Adão entrou na Desembréia de Deus e desatinou a falar da vida.
— O paraíso? Estou aqui há anos, meu filho. Cercado por torres altas, mas com muito verde, coisa linda! ~ disse Adão, ajeitando a boina puída, enquanto a Desembréia circulava pelas últimas ruas do bairro antes de ganhar as avenidas barulhentas e poluídas de São Paulo.
Eu, Frei e-uBer, motorista por vocação e filósofo por falta de opção, sorri pelo retrovisor e segui viagem. Sabia que ele falava do Jardim Santa Terezinha, um oásis de árvores espremido entre prédios da Zona Norte. Um paraíso moderno ~ sem Eva, sem serpente… e sem portaria 24 horas. Mas, com certeza, com algumas maçãs escondidas.
— E como é a rotina no paraíso, seu Adão? ~ perguntei, enquanto a Desembréia de Deus se arrastava pelo trânsito lento, sem opções de fuga do tráfego.
— Ah, segunda e quinta eu saio do Éden e venho pras Clínicas. Ritual sagrado. A única certeza na vida é que a rotina não perdoa e o relógio não espera. A Covid me deu um presente, e eu não consigo desembrulhar nem muito menos quero degustar, mas… é preciso!
O trânsito virou um teatro ambulante, com São Paulo passando em câmera lenta pelas janelas. Sessenta e sete minutos de engarrafamento e um repertório inteiro de histórias. Adão falou das aventuras passadas, das noitadas na Augusta, de quando dirigia seu Dodge Charger RT 1969 e a cidade era uma pista livre.
— Era outro tempo, Frei. Hoje, o corpo pede pausa, e a Augusta… bom, hoje a Augusta pede calma também.
O Frei disfarçado em mim soltou uma risada. No fundo, sabia que toda viagem tem suas paradas obrigatórias ~ umas no trânsito, outras na vida. Adão, já na casa dos sessenta e cinco, carregava no olhar o peso dos anos e, nas palavras, a leveza de quem já entendeu que bom mesmo é quando a estrada vira papo. E quando achava um ouvinte disposto, destrancava o baú de histórias como quem abre um cofre premiado. Nem Raul Seixas colecionou tantas ~ embora, justiça seja feita, ambos tenham tido um carro digno de rockstar.
Quando enfim chegamos ao destino, Adão desceu com a paciência de quem não tem pressa. Me fitou nos olhos, agora não mais pelo retrovisor e concluiu:
— O paraíso pode ser um CEP ou um estado de espírito, mas, no fim, ele é sempre aquilo que a gente carrega por dentro.
E assim, entre engarrafamentos e memórias, a vida continuou. Sem pressa, mas com muita estória para contar.