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Não era só cheiro de carro novo… era cheiro de recomeço.
Anos depois, Marcela escreveria em um trabalho escolar:
“Frei não era só um motorista. Era um contador de histórias que nos levou para a consulta onde minha mãe decidiu lutar pela vida. Enquanto eu jogava no tablet, ele e ela costuravam pontes entre passado e presente.”
Antonela, já adolescente, mandaria uma mensagem: “Lembra daquele dia? Eu sabia que tinha algo diferente no seu carro. Não era só cheiro de carro novo… era cheiro de recomeço.”
Hoje, o “Desembréia de Deus” completa sete anos. E, como coincidências, não existem, vou contar essa estória para que vocês tirem suas próprias conclusões. Afinal, a vida tem dessas coisas: ela nos surpreende, nos conecta e, às vezes, nos faz rir até das próprias lágrimas.
O Fiat Siena prata brilhava sob o sol de São Paulo, mas seu verdadeiro brilho estava no adesivo desbotado na traseira: uma cruz entrelaçada a um volante e a palavra “Desembréia”, a primeira ideia de logotipo. Frei e-uBer, o motorista, passou os dedos sobre o símbolo antes de ligar o motor, como sempre fazia. “Desembrulhar histórias, destravar dores”, sussurrou, como um mantra. O carro fora batizado por Cícera Donata, a Mágica das Ervas ~ aquela que tem um chá para tudo ~, uma enfermeira de mãos santas que cura almas. Dias antes, ela ungira o veículo com óleo e lágrimas. “Que cada trajeto seja um verso do Salmo 23”, dissera ela. Frei não apenas acreditava nisso ~ ele sabia.
Era mais do que um carro; era um símbolo de recomeços, de estórias que se desenrolavam a cada curva, de vidas que se cruzavam por acaso ~ ou por destino. O “Desembréia de Deus” não era só um meio de transporte; era um espaço sagrado onde dores se transformavam em esperança e silêncios se tornavam confissões.
E assim, com o motor ligado e o coração cheio de propósito, Frei e-Uber seguia pelas ruas de São Paulo, pronto para desembrulhar mais uma estória. Porque, no fim das contas, a primeira passageira nunca se esquece. E Frei, com seu carro ungido e seu coração cheio de estórias, sabia que cada trajeto era uma chance de desembrulhar um pouco mais da vida. E, quem sabe, rir junto no caminho.
Naquele dia, sua primeira passageira foi Joana, vizinha de sua mãe, acompanhada das filhas, Marcela e Antonela. As meninas entraram no carro mergulhadas em seus tablets, dedos ágeis deslizando pelas telas. Frei e-Uber observou-as pelo retrovisor e sorriu. Lembrou-se de quando tinha 12 anos: mãos calejadas de tanto vender balas no sinal, olhos sempre atentos para fugir da polícia. “Elas desbloqueiam mundos com um toque. Eu desbloqueava medo”, pensou, sem rancor, apenas com a leveza de quem já aprendeu a rir do passado.
— Lembra da minha tia Lúcia? ~ Joana quebrou o silêncio, os olhos fixos na rua. — Aquela que fazia doces de jaca…
Frei soltou uma risada. Como esquecer? A casa de Tia Lúcia era seu refúgio nos dias em que o cheiro de álcool do pai envenenava o ar. Agora, ali, no banco dianteiro, Joana falava da mesma jaca que curava tristeza com angu. O destino, sempre irônico, tecia conexões invisíveis: a rua nome do avô de Joana, cujo nome ela mal conhecia, ficava a poucos metros da casa onde sua mãe, finalmente livre, cozinhava angu sem disfarçar hematomas.
— Angu cura até tristeza, sabia? ~ Joana riu, um som leve que parecia desafiar o peso do mundo.
— Eu sei ~ respondeu Frei e-Uber, com um sorriso. — Minha mãe fazia o melhor angu da cidade.
No caminho à clínica para uma consulta, Joana evitou falar de Alex, o marido. Frei, hábil em ler silêncios, contou-lhe sobre o restaurante em Pinheiros onde aprendera a cozinhar risoto ~ e esperança. Joana riu de novo, dessa vez mais solta, como se o riso fosse um antídoto para as dores não ditas. Ele notou o ultrassom escondido num envelope pardo, mas não perguntou. Em vez disso, rezou em silêncio, lembrando-se de como era carregar promessas invisíveis.
Anos depois, Marcela escreveria em um trabalho escolar:
“Frei e-Uber não era só um motorista. Era um contador de estórias que nos levou para a consulta onde minha mãe decidiu lutar pela vida. Enquanto eu jogava no tablet, ele e ela costuravam pontes entre passado e presente.”
Antonela, já adolescente, mandaria uma mensagem: “Lembra daquele dia? Eu sabia que tinha algo diferente no seu carro. Não era só cheiro de carro novo… era cheiro de recomeço.”
Hoje, o “Desembréia de Deus” ainda corta as ruas de São Paulo. Cícera continua a ungir o carro uma vez por mês, mesmo que Frei já não precise mais de bênçãos. Certa vez, um passageiro perguntou:
— Você acredita que cada corrida é uma missão?
— Não ~ respondeu Frei e-Uber, ajustando o retrovisor com um sorriso nos lábios. — Eu sei.
E o adesivo desbotado? Continua lá – já existe um novo. Mas, isso é para a próxima estória, ou para o novo carro- , como um lembrete de que a vida, às vezes, é como uma viagem de Uber: cheia de curvas, paradas inesperadas e, sempre, espaço para um milagre no banco de trás.
Porque, no fim das contas, a primeira passageira nunca se esquece. E Frei e-Uber, com sua “Desembréia de Deus” ungida e seu coração cheio de estórias, sabe que cada trajeto é uma chance de desembrulhar um pouco mais da vida. E, quem sabe, rir junto no caminho.