Todos nós já tivemos um amigo que começou invisível. Uns brotaram no quintal, deitados à sombra de uma árvore cúmplice, ou escondidos sob seus galhos como segredos verdes. Outros surgiram de surpresa, no colorido jardim da infância.
Alguns atravessaram os anos, cresceram conosco, ganharam carne, voz e CEP e CPF. Outros ficaram lá, na memória, guardados como bonecos sem pilha que só se movem quando a saudade ~ aquela do quadro torto na parede ~ sopra.
Camilla, a minha, não veio no pacote da infância. Ela chegou tarde ~ na curva final da adolescência. Não nasceu de giz de cera ou rabisco na parede, mas de palavras em papel de jornal dos anos 90. Juntos, inventávamos estórias que, de tão inventadas, quase pareciam verdade. Ou será que eram verdades tão bem contadas que pareciam invenção? Nunca soube ao certo; e, acho que ela também ainda não sabe.
O tempo, esse senhor que gosta de brincar de esconde-esconde, nos afastou das tintas e das páginas dos jornais, mas nos devolveu um ao outro no invisível moderno: a internet. Camilla nunca deixou de existir; apenas trocou de cenário, inclusive de CEP.
E eis que ontem, sob a chuva cinza da cidade de São Paulo, o destino resolveu brincar comigo. Enquanto sigo no meu laboratório de vida ~ esse que chamo de trabalho para o livro do Frei e-Uber ~, no banco de trás do carro entraram uma mãe e dois filhos.
A menina, de seis anos, atendia por Camila ~ sem os dois “l”, mas com a mesma ousadia de inventar universos inteiros. Já arriscava juntar letras e, com elas, erguia passarelas para o impossível. Orgulhosa, mostrava um desenho feito no vidro lateral do carro: um coração, cercado de pequenos pontos, que segundo ela eram seus fãs, aplaudindo a estréia de sua imaginação.
E, como toda artista precoce, tinha um cúmplice: um amigo secreto, desses que sabem guardar confidências melhor que qualquer diário. Contava das aventuras com ele como quem fala de alguém de carne e osso. O irmão, Leo, onze anos, torcia o nariz e na sua fase ~ quase adulta, rs! ~ : dizia que era maluquice, invenção de criança.
Mas eu, do banco da frente, sabia que não era maluquice. Era apenas o milagre da infância insistindo em existir ~ mesmo quando o mundo lá fora caía em chuva grossa.
Leo, com aquele ar de “sou grande demais pra acreditar nessas coisas”, debochava. E eu, no volante, sorria em silêncio. Porque sabia. Sabia que talvez ele também já tivesse tido o seu amigo invisível, mas esqueceu ~ como a gente esquece o gosto do primeiro sorvete ou o cheiro da casa da avó.
Naquela corrida, encharcada de chuva e de lembranças sopradas no ar, entendi: a vida tem dessas generosidades ~ nos devolve histórias por atalhos inesperados. Camila, com seus seis anos de encantamento, trouxe-me de volta a Camilla, a de tanto tempo atrás. Uma sorria no banco de trás, a outra segue viva dentro de mim. Mas já não atravessa mares bravios em um barquinho à vela sem vento. Agora descansa firme, ancorada, como quem finalmente encontrou porto seguro.
E talvez seja isso a tal da amizade imaginária: um pacto que o tempo não desfaz, apenas muda de endereço.