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Carona de Palavras

Rua Turiassu, na Pousada dos Pássaros

O trajeto foi um ritual de pequenas traições: eu traía meu roteiro profissional a cada olhar no retrovisor; ela traía sua pressa a cada suspiro demorado. Nos semáforos, o mundo parava, e só existíamos nós dois e o reflexo do céu cinza nos vidros. Às vezes, ela olhava pela janela, e eu via o perfil dela desenhar um poema que eu não sabia escrever. Outras, nossos olhos se encontravam de novo, e um sorriso quase invisível nascia nos lábios dela ~ um sorriso que parecia dizer: “eu sei que você está se apaixonando, e está tudo bem.”

E, tal como chegou ~ um furacão de suavidade e intensidade ~, partiu. Pra nunca mais. Deixou na esteira de sua partida o eco daquele olhar no espelho, o sabor amargo de um “até logo” que não virá, e o perfume doce de um sonho que, naquele ponto na Pousada dos Pássaros, simplesmente se recusou a declinar.

Carona de Palavras

O trajeto foi um silencioso e intenso exercício de contenção.

Enquanto eu roubava olhares pelo retrovisor, ela me devolvia um sorriso que sabia de todo o romance que eu, ali, já estava escrevendo em minha cabeça.

A rua Turiassu, como todas as ruas de São Paulo, não sabe o que é pausa ~ só sabe de pressa disfarçada de rotina. Eu estava ali, motor ligado, pensando se valia a pena esperar mais um minuto por um passageiro que provavelmente já tinha chamado outro carro, quando o telefone vibrou com a urgência de quem acredita que o mundo ainda responde a pedidos: “meu voo tem hora e já estou atrasada.” [como se o tempo fosse um Uber que aceita corrida de última hora.]

Antes que eu pudesse calcular o custo emocional de me envolver com mais uma alma em trânsito, meus dedos já haviam respondido ~ “estou a caminho. não vou cancelar.” ~ como se tivessem memória própria [ou talvez fosse o coração, travestido de impulso digital].

Ela entrou no carro com a leveza de quem não pretende ficar. Loira, Gaúcha, olhos azuis. O banco de trás abraçou-a no pensamento que eu insistia em disfarçar ~ e, nos meus desejos, seria eu aquele abraço. o ar-condicionado engasgou, cúmplice, e o perfume ~ amadeirado, doce, caríssimo ~ espalhou-se pelo interior como quem toma posse do ar e, sobretudo, da lembrança. Era mais do que uma corrida ~ era um comercial de vida alheia, desses que a gente assiste calado, entre curioso e perdido. [será que os perfumes também vencem com o tempo, como o desejo?]

No retrovisor, nossos olhos se encontraram. Foi breve, mas suficiente para que meu cérebro desligasse o modo “motorista” e ligasse o modo “romântico incurável”. Aquele olhar tinha endereço, mas não destino ~ só promessa de partida. “Olhar Mulher Vacariana, Olhar de Xirua”, lembrei, citando uma canção que ninguém mais ouve, como se isso me desse algum direito poético sobre o momento.

“Boa tarde. O endereço é… o aeroporto, confere?” Perguntei, tentando soar neutro, profissional, invisível.

“Sim, confere,” disse ela, com uma voz que parecia saída de um podcast sobre homens em transe. “e… muito obrigada por não ter cancelado.”

[como se eu tivesse escolha. como se, diante de um olhar desses, alguém ainda usasse o app para avaliar o motorista em vez de pedir seu número.]

O trajeto foi um exercício de contenção ~ desses que a gente faz só pra ver até onde o coração aguenta fingir que é maduro. Cada semáforo vermelho era uma tentação, cada curva, uma despedida disfarçada de rotina. Eu roubava olhares no retrovisor como quem fuma escondido [sabendo que faz mal, mas incapaz de parar]. Ela, por sua vez, alternava entre contemplar a cidade e me fitar com um sorriso quase imperceptível ~ desses que entregam o jogo antes da confissão. Parecia adivinhar que eu, ali, dentro daquele carro comum, estava escrevendo um romance inteiro na cabeça, com trilha sonora, roteiro e final feliz garantido pela imaginação.

Então ela soltou a pérola: ~ dessa vez, não encontrei uma pizzaria aqui, mas vou voltar e pretendo, nesse regresso, saborear uma. O Senhor ~ quase morri, pois achei que seria “moço” ~ poderia me indicar uma?

Claro que sim, respondi. E eu tinha uma na ponta da língua, com direito a lembranças e guardanapos manchados de molho. Mas, em vez de falar, deitei a sonhar. E o silêncio acabou sendo a melhor pizza daquela noite.

Chegamos ao aeroporto depois de um desvio que justifiquei com um “engarrei no waze”, mas que na verdade foi só um pedido silencioso ao tempo: “dá mais um pouco.”

Ela desceu, pegou a mala com a eficiência de quem já fez aquilo mil vezes, e ficou parada na calçada como se o mundo tivesse dado um buffer. Nossos olhos se encontraram pela última vez. Eu queria dizer algo memorável, mas só consegui um “até um dia!”, fraco, genérico, digno de nota de rodapé.

[na verdade, gritei por dentro: “Volta! Ou me leva. Ou me apaga.” Mas o grito morreu abafado pelo barulho de um avião decolando lá longe.]

Ela sorriu, acenou e mergulhou no aeroporto ~ aquela catedral de aço e vidro onde os adeuses têm hora marcada e os sentimentos desmaiam de fuso horário.

E assim, entre um sinal vermelho e o som mecânico da corrida finalizada no aplicativo, eu havia vivido uma epopeia íntima que durou 144 minutos. Dois horas e vinte e quatro minutos: o tempo exato de um longo filme, ou de um amor que nasceu, viveu e se despediu na bolha de um carro.

Afinal, em uma era de conexão instantânea e afetos descartáveis, o ato mais subversivo e triste que restou é olhar nos olhos de um estranho ~ e acreditar, com todas as forças, ainda que só por uma viagem, que aquilo poderia significar tudo.

E ela partiu. Para nunca mais. Deixou para trás o eco de um olhar no retrovisor, a promessa vazia de uma pizza e o cheiro doce de um sonho que, na Rua Turiassu, na Pousada dos Pássaros, simplesmente se negou a acabar.

Frei e-uBer, motorista de histórias e espectador de vidas, assina esta crônica entre um congestionamento e uma esperança.
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Em cada corrida uma Estória. Em cada Estória: Fé que transforma!
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Papo Reto: 11 986 939 147

Desembréia: 02861-060 – Brasil, São Paulo, Cachoeirinha, Vila Rica, Ouvídio José Antônio Santana.

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Frei e-Uber

A cidade grande não recebeu o jovem sonhador com braços abertos. Sem dinheiro e sem conhecer ninguém, dormiu em rodoviárias e passou fome antes de encontrar um emprego lavando pratos em uma lanchonete. Subiu para chapeiro e depois subchefe, trabalhando exaustivamente, agarrando cada oportunidade, cada centavo. Mas a promessa de voltar para buscar sua família parecia sempre mais distante.

Foto de Matheus Natan: https://www.pexels.com/pt-br/foto/pessoas-cruzando-a-rua-1813406/