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Carona de Palavras

o medo, às vezes, tem mais vírus que qualquer pombo.

donaMãe, também conhecida como Zina observa do outro lado das grades, de dentro da casa, onde o ar é filtrado por cortinas rendadas e o medo de doenças. [ afinal, já leu nos jornais: pombos carregam tudo ~ fungos, bactérias, até a tristeza alheia, quem sabe ]. mas ali, protegida por quatro paredes e uma janela entreaberta, pode exercer sua maternidade sem risco. dá comida, dá nome, dá destino. “os coitadinhos precisam das mães”, repete, como se o mundo inteiro tivesse esquecido que os pombos, na verdade, são criados por ambos os pais.

 

eu tento explicar, com a paciência cansada de quem já disse isso cem vezes: “mãe, quem alimenta os filhotes são os dois. o macho e a fêmea. é assim mesmo.” ela me olha como se eu tivesse acabado de negar a existência de anjos. “mas aqui na cidade”, responde, apontando para uma pomba branca que engole uma migalha inteira, “eles não têm chácara, não têm quintal. não têm mãe nenhuma além de mim.”

Carona de Palavras

e ali, entre farelos e penas, donaMãe, também conhecida como Zina, recria o mundo: um mundo em que basta um pedaço de pão para ser mãe de novo, mesmo que só por cinco minutos, mesmo que só para pássaros que jamais saberão seu nome.

no fim, os pombos voam. ela fecha a janela. e o silêncio que sobra é tão espesso quanto a geleia endurecida no prato ~ doce, inútil, e perfeitamente real, ou talvez só um pouco menos irreal do que tudo o mais.

donaMãe, também conhecida como Zina, acordou antes do sol, como sempre ~ se bem que hoje o dia está frio e nublado. o barulho da chaleira era o mesmo de quando morava em Garanhuns, Pernambuco ~ um chiado quente que anuncia o começo das coisas. na mesa, o pão amanhecido, duro, desses que fariam qualquer dente pedir aposentadoria. ela pegou a faca com cuidado, foi raspando as beiradas, juntando os farelos num pratinho Duralex marrom ~ esses que seu neto, meu filho, quer a todo custo de herança. parecia um ritual antigo, herdado de ninguém e passado a ninguém. só dela.

~ são os pombos que esperam. disse-me, olhando pra dentro da minha infância que eu nem reconheço mais.

olhei pela janela. estavam lá ~ e não é que eles estavam lá, meio dormindo, meio de olho nas migalhas que ainda nem haviam caído. [ esses pombos têm a cara da cidade: sobrevivem do resto e ainda andam de peito estufado ]. donaMãe abriu o portão só o suficiente pra deixar o prato do lado de fora. ficou observando, de trás das grades, como quem dá esmola ao destino.

~ não chegue muito perto, mãe. esses bichos carregam doença. tentei impor uma falsa responsabilidade de filho~pai.

ela riu, um riso pequeno, de quem já ouviu o mesmo conselho vezes demais. [ o medo, às vezes, tem mais vírus que qualquer pombo. ]

~ ah, menino ~ ainda sou uma criança aos seus olhos de Zina ~ eles têm filhotes. a mãe precisa levar comida pra eles.

tentei explicar que, entre pombos, quem alimenta é o pai [ ainda que os ornitólogos digam que são ambos ]. mas ela fez aquele gesto sereno de quem não discute com o coração quando o assunto é ternura. continuou ali, quieta, vendo o bando se ajeitar, bicando o pão como quem agradece à missa das sobras.

o sol, teimoso em nascer inteiro, bateu nas grades e fez brilhar o rosto dela ~ cercada, protegida, livre apenas no gesto. fiquei pensando se a gente não faz o mesmo: alimenta o que sobra do dia, acreditando que ainda dá pra ensinar delicadeza ao mundo.

lá fora, uma pomba branca, mais ousada que as outras, subiu no portão e encarou donaMãe, também conhecida como Zina. ela sorriu, como quem reencontra uma velha amiga, e disse: ~ hoje os filhinhos dela vão se saciar primeiro ~ depois ela volta pra ter a sua parte. primeiro os filhotes, afirmou com convicção mansa.

[ou talvez tenha sido só o reflexo do sol. mas juro que a pomba piscou de volta.]

Frei e-uBer, motorista de histórias e espectador de vidas, assina esta crônica entre um congestionamento e uma esperança.
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Em cada corrida uma Estória. Em cada Estória: Fé que transforma!
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Frei e-Uber

A cidade grande não recebeu o jovem sonhador com braços abertos. Sem dinheiro e sem conhecer ninguém, dormiu em rodoviárias e passou fome antes de encontrar um emprego lavando pratos em uma lanchonete. Subiu para chapeiro e depois subchefe, trabalhando exaustivamente, agarrando cada oportunidade, cada centavo. Mas a promessa de voltar para buscar sua família parecia sempre mais distante.

Foto de Matheus Natan: https://www.pexels.com/pt-br/foto/pessoas-cruzando-a-rua-1813406/