donaMãe, também conhecida como Zina, acordou antes do sol, como sempre ~ se bem que hoje o dia está frio e nublado. o barulho da chaleira era o mesmo de quando morava em Garanhuns, Pernambuco ~ um chiado quente que anuncia o começo das coisas. na mesa, o pão amanhecido, duro, desses que fariam qualquer dente pedir aposentadoria. ela pegou a faca com cuidado, foi raspando as beiradas, juntando os farelos num pratinho Duralex marrom ~ esses que seu neto, meu filho, quer a todo custo de herança. parecia um ritual antigo, herdado de ninguém e passado a ninguém. só dela.
~ são os pombos que esperam. disse-me, olhando pra dentro da minha infância que eu nem reconheço mais.
olhei pela janela. estavam lá ~ e não é que eles estavam lá, meio dormindo, meio de olho nas migalhas que ainda nem haviam caído. [ esses pombos têm a cara da cidade: sobrevivem do resto e ainda andam de peito estufado ]. donaMãe abriu o portão só o suficiente pra deixar o prato do lado de fora. ficou observando, de trás das grades, como quem dá esmola ao destino.
~ não chegue muito perto, mãe. esses bichos carregam doença. tentei impor uma falsa responsabilidade de filho~pai.
ela riu, um riso pequeno, de quem já ouviu o mesmo conselho vezes demais. [ o medo, às vezes, tem mais vírus que qualquer pombo. ]
~ ah, menino ~ ainda sou uma criança aos seus olhos de Zina ~ eles têm filhotes. a mãe precisa levar comida pra eles.
tentei explicar que, entre pombos, quem alimenta é o pai [ ainda que os ornitólogos digam que são ambos ]. mas ela fez aquele gesto sereno de quem não discute com o coração quando o assunto é ternura. continuou ali, quieta, vendo o bando se ajeitar, bicando o pão como quem agradece à missa das sobras.
o sol, teimoso em nascer inteiro, bateu nas grades e fez brilhar o rosto dela ~ cercada, protegida, livre apenas no gesto. fiquei pensando se a gente não faz o mesmo: alimenta o que sobra do dia, acreditando que ainda dá pra ensinar delicadeza ao mundo.
lá fora, uma pomba branca, mais ousada que as outras, subiu no portão e encarou donaMãe, também conhecida como Zina. ela sorriu, como quem reencontra uma velha amiga, e disse: ~ hoje os filhinhos dela vão se saciar primeiro ~ depois ela volta pra ter a sua parte. primeiro os filhotes, afirmou com convicção mansa.
[ou talvez tenha sido só o reflexo do sol. mas juro que a pomba piscou de volta.]
