ô trem… Tem coisa que aperta a gente num canto do peito que nem buzina de início de turno. Pra Jussara, é o Celtinha. pra mim, é a lembrança da minha vó mexendo panela. E quando ela entrou no meu carro, avental cheirando a açúcar queimando devagar, já senti que vinha história doce misturada com amarguinha de vida.
A confeitaria dela leva o nome da avó: dona Roberta “Berta Pão Doce”. Pequena, arrumadinha, daquelas que você abre a porta e o ar já fica granulado. Foi essa avó que ensinou tudo: colocava a menina numa cadeira ao lado da pia, falava do jeito certo de deixar o açúcar cair “em chuva”, mostrava o ponto exato da massa ~ aquele ponto danado, que dá vontade de enfiar o dedo mesmo sabendo que vai levar bronca. Cada gesto da velha era como benzer a cozinha, como se misturar manteiga fosse oração de família.
Roberta carregava um povo inteiro dentro dela: a fartura dos italianos, a firmeza dos peruanos que falavam de Alfajor com peito estufado, e o tempero dos indígenas do Pará, que cozinham sorrindo por dentro. Tudo isso virou receita, virou rumo, virou jeito.
Quando Jussara fala dessa avó, o olhar dela amansa. Não é aquela santidade de milagre rápido, não. É a santidade trabalhada, a que faz bolo crescer em forno cansado, a que vira o dia de cabeça pra baixo e ainda encontra força pra fazer mais um brigadeiro. E, talvez por isso, o que mais machuca agora é o estado do carro. O celta dela ~ verde desbotado, modelo 2000, um dos primeirinhos ~ tá quase pedindo extrema-unção.
“Frei… começou com gasolina batizada”, ela conta, soltando o cinto como quem alivia uma culpa. “Ficou um mês internado. Nesse tempo, eu fazia as entregas de ônibus. Acredita?” Depois veio a bateria que desistiu da vida, e agora a porta que não fecha de jeito nenhum. É precisa dar um empurrãozinho com o quadril ~ me explica ela ~, e é tão automático que parece até carinho ~ uma teimosia que virou rotina.
E ela sabe que precisa trocar de carro. Sabe como quem sabe que precisa arrancar um dente. O problema é o buraco que fica. Pra Jussara, trocar o celta é despedir da avó outra vez, e talvez enterrar a “Berta Pão Doce. Com o Celta, ela compra os ingredientes, faz entregas, distribui açúcar e lembrança pela vizinhança. Depender de Uber e 99 pra isso? inviável. Qualquer aumento no preço dos Alfajor faria a avó levantar no túmulo pra dar bronca ~ ou pra perguntar, café na mão: “tá acontecendo o quê aí, menina?”
E olha que ironia: ela me conta tudo isso dentro da minha “Desembréia de Deus”. Estamos lá, atrás, perfume dela misturado ao cheiro de carro velho bem cuidado, e parece até que ela tá me convidando pra ser sócio da confeitaria em troca de penitência. Mas eu só sei dirigir e escutar. Não sou padeiro, não sei curar massa triste, nem sovar desânimo. Só rodo por São Paulo atrás de conversa boa. Virei a esquina estreita, deixei o trânsito decidir o caminho, e encerramos a corrida. Ainda bem ~ vai que eu descobria talento pra confeitaria e precisava largar o volante?
Antes de sair, ela alisa o avental, respira como quem engole lembrança e olha pela janela um pouco derrotada. “Às vezes acho que esse carro é a última coisa que me liga à minha avó”, ela diz. “Não sei se tô pronta pra deixar ele ir.” E eu entendo. Porque, no fundo, não é o carro. É o que sobra quando a vida leva o resto.
No final, a pergunta que fica é aquela que ninguém gosta de encarar de frente: vale mais a memória ou a manutenção? Complicado demais responder ~ principalmente num país onde até político roda anos e anos com peça trocada e nunca perde a pose. Farol queimado eles têm, mas vergonha… essa, não.
