A Desembréia de Deus seguia sua jornada como quem atravessa os mares vermelhos do trânsito paulistano. Jogo grande [ Cruzeiro 2 x 1 Palmeiras ] não era no Allianz ~ era no Mineirão ~, mas, a torcida espalhada por tudo quanto é calçada, bandeira em punho, buzina por dentro e por fora. Pompéia estava mais agitada que confessionário em véspera de romaria.
Foi ali, nas imediações do Shopping Bourbon, que Geovana e Mariana entraram no meu carro ~ duas mulheres com pressa de ir embora, mas não sabiam se era do bairro, da cidade ou de si mesmas. Pediu-se o Metrô Higienópolis-Mackenzie como destino, mas pelo GPS, Marechal Deodoro ou até a velha Barra Funda estariam mais próximas. Ainda assim, segui a rota solicitada. Não sou de definir destinos, apenas conduzo.
Mas algo nelas não batia com o cenário. Nervosas demais para torcedoras. Olhares que se cruzavam como quem confirma a mesma história ensaiada. Aquele nervosismo não era sobre o trânsito, nem sobre a camisa errada no lugar errado ~ era sobre algo maior. E foi ali que Geovana, num tom entre confissão e roteiro de streaming, começou a narrar.
— Acordamos tarde ~ ela disse, olhando pela janela como quem evita se ver no retrovisor. ~ A noite tinha sido longa, intensa, daquelas que a gente não programa, só vive. Lençóis macios, muito champagne, beijos, morango do amor e blackout total. O tipo de sono que só vem depois do amor cansado e bom, sabe como é?
E, mesmo que soubesse, ainda em pensamento, minha resposta era não!
— Tudo o que queríamos ~ completou Mariana, no banco ao lado ~ era tomar um café reforçado e voltar pra cama. Amor de hoje, sabe como é, Frei… a gente não programa pra amanhã.
Assenti com um sorriso que não julga nem concorda. Sou só o condutor. Mas a história se amargou de repente.
— Só que tinha um corpo na piscina. E não era qualquer corpo. Era Elena.
Foi aí que me vi obrigado a interromper. Reduzi a marcha e perguntei, quase estacionando:
— Quem é Elena?
Geovana hesitou, mas Mariana respondeu rápido, como quem segura a narrativa pelas rédeas:
— Nadadora profissional. Mulher cheia de energia, cheia de vida. Nunca se afogaria numa piscina rasa como aquela. Era um metro e meio, Frei. Nem criança se afoga ali.
— A não ser que… ~ murmurei, mais pra mim mesmo do que pra elas.
Geovana então completou, com um tom que já não era mais de culpa, mas de construção:
— Elena… é a personagem do meu livro.
Por um segundo, fiquei no limbo entre ficção e boletim de ocorrência. Um corpo real ou uma metáfora literária? Havia sangue na cena ou apenas tinta no papel? A dúvida me atravessou mais que o congestionamento.
— E eu? ~ pensei. ~ Levo pra delegacia ou pro metrô?
Enquanto o Waze indicava uma conversão à direita, meu coração apontava pra esquerda. Mas fiz o que sempre faço: segui o destino solicitado. Nem sempre é minha função entender o enredo. Sou só o capítulo em que elas entram no carro, contam parte da história e depois descem, levando seus mistérios com elas.
A última frase antes do silêncio veio de Mariana, já perto da estação:
— Frei, a gente escreve pra não enlouquecer. Às vezes, até mata uma personagem pra sobreviver à própria história.
Ela riu, mas o olhar dela… ah, o olhar dizia outra coisa.
Geovana apenas disse “obrigada” e fechou a porta. E a Desembréia de Deus partiu, com um novo enigma no banco de trás.