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Frei e-uBer, como é carinhosamente chamado, não é apenas um motorista de aplicativos em São Paulo. Ele é um ouvinte atento e contador de estórias que transformou seu carro em uma igreja móvel, a Desembréia de Deus.
Frei e-uBer nasceu e cresceu em Uberlândia, Minas Gerais, em um lar onde o medo e a esperança caminhavam lado a lado. Seu pai, um homem autoritário e intempestivo, oscilava entre o silêncio ameaçador e a violência, agravada pelo álcool. Quando não estava bêbado, estava preso. A mãe, uma mulher de fé inabalável e força silenciosa, fazia o possível para proteger os filhos dos acessos de fúria do marido. Mas nem sempre conseguia.
Desde pequeno, ele aprendeu que dentro de casa tudo era imprevisível. O barulho da chave na porta ao fim do dia podia significar apenas duas coisas: ou o pai chegava cansado e quieto, ou vinha com os olhos vermelhos, a voz alta e os punhos cerrados. Nessas noites, sua missão era esconder as irmãs menores, Alice e Luiza, no quarto e fazer de si mesmo um escudo entre elas e o pior.
A escola era o único lugar onde se sentia seguro, mas os cadernos rabiscados escondiam a verdade de uma infância marcada por privação e medo. A mãe, costurando e fazendo faxinas, tentava garantir comida na mesa, mas muitas vezes era ele quem precisava improvisar para que as irmãs tivessem o que comer. Aos 12 anos, começou a vender balas nos sinais e a engraxar sapatos no centro da cidade. Aos 15, conseguiu um emprego lavando pratos em um restaurante, onde aprendeu a gostar da cozinha e sonhou, pela primeira vez, com uma vida diferente.
Mas era apenas um sonho. Em casa, as brigas aumentavam e a mãe acumulava hematomas e desculpas. Aos 17 anos, após uma madrugada em que o pai voltou pior do que nunca e arremessou pratos e palavras cortantes pela cozinha, ele decidiu que não podia mais esperar o destino mudar: teria que mudar o próprio destino.
O plano surgiu como um sussurro no meio da dor: fugir para São Paulo, trabalhar, juntar dinheiro e voltar para buscar a mãe e as irmãs. Aos 18 anos, com uma mochila pequena e uma promessa gigante, pegou um ônibus para a capital paulista, sentindo a culpa de deixá-las para trás, mas com a certeza de que era o único caminho para salvá-las.
O Começo de Uma Nova Luta
A cidade grande não recebeu o jovem sonhador com braços abertos. Sem dinheiro e sem conhecer ninguém, dormiu em rodoviárias e passou fome antes de encontrar um emprego lavando pratos em uma lanchonete. Subiu para chapeiro e depois subchefe, trabalhando exaustivamente, agarrando cada oportunidade, cada centavo. Mas a promessa de voltar para buscar sua família parecia sempre mais distante.
Foi nesse período que sua fé começou a se transformar. Se antes orava por desespero, agora orava por força. E, mesmo sem perceber, começou a mudar. Aquele jovem que saiu de Uberlândia carregado de revolta começou a entender que a raiva não o levaria a lugar nenhum. O perdão, que parecia impossível, se tornou uma semente silenciosa dentro dele.
Mas o destino, sempre imprevisível, tinha planos que ele jamais imaginaria.
Conseguir o cargo de subchefe de cozinha em um restaurante de Pinheiros foi um marco na vida dele. Não era só um emprego: era a materialização do esforço de anos. Com um salário digno, conseguiu finalmente trazer a mãe e as irmãs para São Paulo. Alugaram um pequeno apartamento na Lapa. Alice e Luiza puderam continuar os estudos sem a sombra do medo. A mãe, livre das garras do pai, começou a trabalhar como costureira sem precisar esconder roxos no corpo. Pela primeira vez, sentiu o gosto da vitória.
Mas a vida, essa que ensina mais pelo choque do que pelo carinho, resolveu testar sua fé de uma maneira brutal.
Era uma noite comum. Terminou o expediente no restaurante e pegou um ônibus para casa. No dia seguinte, ao acordar, o caos já estava esperando por ele. Uma mulher fora assaltada no Largo da Batata. A descrição que ela deu à polícia coincidia com sua aparência. Alguém — talvez por engano, talvez de propósito ~ apontou para ele como suspeito. A polícia conseguiu uma foto. De onde veio? Talvez de alguma rede social, talvez algum conhecido o tivesse entregue sem pensar.
Não houve chance de explicação. No instante seguinte, ele era um criminoso.
Preso, sem provas concretas a seu favor, viu sua vida virar pó. Os “amigos” sumiram. O restaurante o demitiu sem hesitação. A própria família começou a se afastar. A mãe e as irmãs, por medo, pararam de visitá-lo. Ele não podia culpá-las. Já tinham passado por tanto. A presença de um filho preso poderia arrastá-las de volta para o pesadelo que tentavam esquecer.
Então ficou sozinho.
Seis meses. Seis meses para provar que não era culpado.
No começo, a raiva queimava dentro dele. Revolta. Injustiça. O pensamento de que sua vida estava sendo destruída por um erro absurdo o consumia. Mas ninguém queria ouvir. Na prisão, ninguém quer saber se você é inocente.
Foi ali, na cela fria e sem promessas, que a desembréia começou a fazer sentido.
Sem amigos, sem família, sem ninguém para ouvi-lo, fez amizade com Deus.
Começou a ler a Bíblia. Primeiro, por falta do que fazer. Depois, como quem busca um norte. Entre as páginas gastas, encontrou histórias que falavam diretamente com ele. José, vendido pelos irmãos e preso injustamente. Davi, fugindo por anos de um crime que não cometeu. Paulo, encarcerado, mas jamais derrotado.
Nos corredores sombrios, começou a ouvir histórias de outros presos. Homens que já não tinham esperança. Homens que carregavam bagagens tão pesadas quanto a dele. Alguns culpados, outros também vítimas de um sistema que não se importa em ouvir.
E foi no silêncio espesso das madrugadas, onde a única pergunta que sobrava era: por quê?, que encontrou a resposta.
Ele poderia passar o resto da vida amargurado ou poderia transformar sua dor em algo maior.
Seis meses depois, a verdade veio à tona. A mulher que o acusara admitiu que havia se enganado. Uma nova investigação revelou que o verdadeiro assaltante já tinha um histórico e foi preso em outra ocorrência.
Ele saiu da prisão sem algemas, mas não sem cicatrizes.
O mundo lá fora não era o mesmo. Não para ele. O restaurante que um dia lhe abriu portas não o queria de volta. Os “amigos” que desapareceram não queriam ouvir sua história. A própria família o recebeu com um carinho tímido, mas também com medo.
Ele entendeu que, para todos os efeitos, estava sozinho.
Foi então que decidiu que não voltaria mais para a cozinha. Viraria motorista de aplicativo.
Porque agora sua missão era outra.
Ele carregaria pessoas. Mas não só isso. Carregaria histórias, dores, sonhos e arrependimentos.
E, através da fé, tentaria ajudar cada um a desembrulhar o que estava preso, destravar o que estava travado e encontrar um caminho.