pode soar doideira, caô ou papo pra espantar mosca. Mas, cada vez que alguém abre a porta do meu carro, eu solto a mesma pergunta: posso deixar o rádio rolando? é que meu gosto musical nem sempre bate com o do fiel que se ajeita no banco de trás, pronto pra descarregar as confissões do dia.
Na “Desembréia de Deus”, o rádio insiste em tocar coisa boa ~ dessas músicas que ainda carregam verdade no peito. E eis que de repente, surge a introdução de “Sua Onda”:
Lavei a alma pra começar
Nadei na água, pisei no chão
No meu caminho, cruzei deserto
De peito aberto, na contramão.
Pronto. Três minutos de mundo suspenso. Meu coração, esse velho teimoso, achou seu lugar no compasso. A voz era ela: precisa e suave, firme e terna, ocupando aquele espaço raro entre técnica e afeto. A voz de Marisa Monte.
A história começou lá atrás, em 1985. Mas foi em 1988, com a mão tremendo na assinatura do primeiro contrato com a EMI, que o sonho ganhou moldura de profissão. No ano seguinte, veio “MM” ~ disco de estreia com alma de clássico, desses que já chegam prontos, como carta de amor escrita por quem sabe exatamente o que quer dizer. E antes disso, a benção da Portela: 18 anos, palco da escola, e o Brasil musical entendendo que ali surgia uma outra curva no mapa.
E assim se deram os encontros que moldam caminhos: a tradição serena de Paulinho da Viola encontrou a alquimia criativa de Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes. Desse caldeirão brotaram os Tribalistas, fenômeno que redefiniu o som de um país. Em seu próprio ritmo, Marisa foi então compondo seu universo singular. Álbum após álbum, com a sensibilidade de quem escreve versos ao ouvido e a minúcia de quem trabalha sobre diamantes, ela polia sua obra até a transparência. Conquistou a prateleira dos indispensáveis ~ aquela que só abrimos em dias que pedem verdade.
Agora, dezembro de 2025, ela completa quarenta anos de estrada. Não é só carreira: é ofício que dignifica. Uma artista que carrega, com uma serenidade quase mítica, a alma de um Brasil que ainda sabe dançar bonito, sambar lento, chorar olhando a rua, achar beleza até no que dói. Tudo isso lapidado com fios de “Amor Y Love You”, “Gentileza”, “Velha Infância”.
Olho o cenário atual, pleno de vozes novas. Tem brilho, tem potência, tem urgência ~ como fogos de artifício que rasgam o céu, deixam a gente maravilhado, e somem na fumaça logo depois. Há beleza nisso. Mas também nasce uma saudade do que fica.
A música no rádio silencia. Fica só o ar. E no ar, aquela certeza mansa: hoje eu queria uma pausa de mil compassos, só para escutar ~ Um Barulhinho Bom, a Chuva no Brejo ~ o mundo com os ouvidos dela. Talentos não faltam à nova geração, isso é festa garantida. Mas, mirando o futuro, nos próximos quarenta anos, deixo aqui a confissão: não enxergo quem venha destronar esse reinado.
Um reino construído sem alarde, música por música, gesto por gesto. Feito de afeto, não de estampido. De rigor, não de moda. De beleza, não de efeito. Um reino que parece ~ e meu coração assina embaixo ~ ainda longe do fim da linha.
E que seguirá brilhando, feliz, alegre e forte, por muito, muito tempo.
