Seus sonhos eram simples: ver o Corinthians campeão, acampar na praia de Boracéia e ver os filhos reunidos. Para Cláudio, conhecido como Claudião, essa tríade representava a vida plena que uma doença implacável tentou, em vão, roubar.
Há derrotas que são, na verdade, as maiores vitórias. A história de Claudião não é a de um homem que morreu sem realizar seus sonhos, mas a de um que, até o último instante, ensinou que estar vivo ‘um cadinho mais‘ já era motivo para celebrar.
Cláudio partiu sem realizar dois de seus três grandes desejos. Mas a lição que deixa não é a da frustração, e sim a da celebração obstinada da vida, mesmo quando ela se reduz a meros “cadinhos” de tempo. Como disse o Frei.eUber, ele era um guerreiro pela simples e poderosa determinação de viver.
Seus sonhos eram simples, mas profundos como a própria existência: ver o Corinthians levantar mais uma taça, acampar novamente na praia de Boracéia ~ não apenas passar um dia, mas montar a barraca e viver a liberdade do litoral ~ e, acima de tudo, ver seus filhos reconciliados. Este último, que ele considerava uma “missão impossível”, foi o único que pôde testemunhar ainda em vida. Seus filhos se uniram em torno de sua dor, e esse foi seu maior e último troféu.
Mas havia um quarto desejo, íntimo e não declarado, que ele fez questão de cumprir: levar-me, junto com o neto Bruno, a uma churrascaria. Ali, entre talheres e conversas, ele comeu de tudo ~ exceto frango. Não suportava sequer o cheiro da ave. Era seu jeito simples de celebrar a vida, de saborear os últimos momentos com quem amava, recusando apenas o que não lhe agradava, numa última afirmação tranquila de sua própria vontade.
Era um homem de quase dois metros de altura, mas sua grandeza moral ofuscava completamente sua imponência física. Nossa amizade era ditada pelos ‘causos’ simples que compõem a vida: cervejas compartilhadas, playlists trocadas, conversas que se estendiam pela noite. Entre tantos momentos, guardo com especial carinho suas histórias vibrantes sobre Ribeirão Preto, a “Califórnia Brasileira” que ele percorria como representante comercial. Seus olhos marejavam ao lembrar das pessoas generosas e das festas que pareciam não ter fim. Nossos debates transitavam do futebol ~ ele, corintiano desiludido com a diretoria; eu, santista na corda bamba ~ à política, onde reinava sua sabedoria prática: “Direita e Esquerda são apenas pontos de direção que não convergem. Nós dois somos superiores a essa disputa”.
Nos seus últimos dias, testemunhei o gigante se render à fragilidade. Seus 80 kg pareciam uma ironia cruel para quem teve uma presença tão marcante. A dor se tornou sua companheira constante, e dentro do carro – a “Desembréia de Deus” que o levava aos tratamentos ~ ele se contorcia em agonia.
Seu sobrenome era Santos, e sua mãe carregava no batismo o nome da Vila Mais Famosa do Mundo. Começo a achar que ele mentia quando dizia ser corintiano ~ porque, se todo pescador é mentiroso, ele só podia mesmo era torcer pro Peixe.
Mesmo então, sua única reclamação era um pedido quase gentil: “Não me fode mais do que eu já tô fudido”, suplicava, referindo-se aos buracos da estrada que torturavam sua hemorroida inflamada. E num rompante de esperança que definia seu caráter, completava: “Mas não tem nada não… se as ruas estão ruins, se não está bom, vai melhorar”.
Nessa travessia difícil, Luiza, sua “baixinha”, foi seu porto seguro até onde suas forças permitiram. Nos momentos mais cruciais, ela extraiu de si uma energia sobre-humana para sustentá-lo. Minha despedida, no entanto, aconteceu à distância, impedido por uma gripe forte de acompanhar seus últimos instantes. A imagem que guardo dele entre os vivos é daquele dia frágil da internação; a última, a mais cruel, foi vê-lo inerte na bancada do hospital, mas, num último consolo, repousando nos braços de dona Belmira, sua mãe ~ a santa cujo nome ele invocava nos momentos de maior sofrimento.
Entre todos os guerreiros que lutaram por ele, destacava-se sua sobrinha Laura, uma leoa em sua defesa. Foi ela quem travou as batalhas mais árduas com o plano de saúde, do diagnóstico ao último suspiro. Claudião, consciente do peso que representava, muitas vezes hesitava em “dar trabalho”, tentando poupar justamente a pessoa que mais insistia em ser sua advogada, sua voz e sua ponte naquela jornada desumana pela vida.
Cláudio não viu seu timão campeão. Não armou sua barraca à beira-mar. Mas realizou o desejo que redime todos os outros: viu sua família reunida. e, por sua coragem diante da dor e sua alegria teimosa diante do pouco que a vida ainda lhe oferecia, é impossível não imaginar que, em algum lugar além, ele já tenha encontrado uma quadra. Que já esteja com os amigos do Serra Morena, dos “loucos” por ti Corinthians, e que um novo campeonato de bocha no céu já tenha começado. E que, desta vez, a vitória é toda dele.
