Parece que a estação da Primavera, dessas que não gostam de pressa, chegou no seu tempo mineiro ~ devagarinho, quase pedindo licença pra entrar ~ e resolveu, enfim, se mostrar em São Paulo. Hoje, bem cedinho, quando o sol ainda ensaiava seus primeiros passos no céu, já dava pra sentir o ar mudando de humor. Pelas ruas, moças iam aparecendo com aquela leveza que só a estação sabe ensinar ~ pernas de fora, minissaias plissadas dançando no compasso do passo, como se o asfalto quente também tivesse descoberto seu próprio coração batendo.
Tem um trem nisso tudo que me pega de jeito. Não é só o calor dando as caras de novo, nem só as roupas sorrindo no corpo ~ é o tanto que a cidade parece puxar o ar diferente, como se, de repente, todo mundo lembrasse que viver é mesmo coisa pra ser feita do lado de fora, sob aquele brilho dourado que o sol inventa nas primeiras horas. E eu, que sou danado pra me encantar com essas sutilezas, fico ali, meio abobado mesmo, assistindo de graça ao show: a cidade se espreguiçando na pele do povo, no dourado manso das pernas que parecem não conhecer o fim da juventude, nos pés quase descalços em sandálias marcando o passo lento dos dias que já ensaiam o Verão.
A moça do café na barraquinha da esquina, por exemplo, até mudou o tom da voz. Trocou o “café pingado, freguês?” Por um “quer açúcar, campeão?” [com uma alegria suspeita, dessas que só aparecem quando alguém descobre que o amor também pode render gorjeta]. Os motoristas, curiosamente, buzinam menos. Talvez por distração, talvez por preguiça. Ou, quem sabe, porque o sol tem esse poder secreto de dissolver a raiva urbana, misturado a um ar mais frio ~ ou seria prenúncio de chuva no fim do dia? ~ esse tempero diário da metrópole cebola que deixa todo mundo com cara de boleto vencido.
Na praça, o pessoal já começa a disputar os bancos de sombra, como se fossem camarotes pra assistir o desfile da nova estação. Há algo de coletivo nisso, um pacto silencioso de quem decide, por algumas horas, viver em paz com o calor e com os outros. Até o cachorro caramelo parece sorrir, abanando o rabo com uma sabedoria que falta em muito parlamentar.
Só que a beleza das coisas vive nessa fronteira tênue entre o que é e o que poderia ser. Daqui a pouco, algum especialista em botânica vai aparecer na tv, declamando que o ipê amarelo é o símbolo da prosperidade nacional [e que estamos todos florescendo em conjunto, como num comercial de margarina tropicalizada]. Enquanto isso, a gente segue regando a esperança com água racionada e fé reciclada, segurando o suspiro pra não cair no riso.
Mas, veja bem, é justamente aí que mora o milagre: a alegria do Verão passa pela Primavera. Passa pela moça que atravessa a rua ajeitando o cabelo, pelo café servido com um sorriso fora de hora, pelo vento morno que balança o toldo das padarias e os humores dos transeuntes. Passa pelo simples fato de que, por alguns minutos, o mundo parece menos pesado, menos urgente, menos cobrança.
E eu sigo meu caminho ~ [conhecendo cada palmo, cada curva, cada sinal] ~ guardando o espetáculo efêmero da flor que nasce no asfalto ~ porque a cidade que me privou de tantas coisas nunca conseguiu me tirar a chave que abre todas as grades: a memória do Verão que sempre retorna.
No fim das contas, é fácil acreditar que o país está florescendo quando se olha a vida da janela com ar-condicionado ligado ~ difícil mesmo é ver onde enterraram as sementes. Mas, claro, sempre tem alguém pra fazer um discurso bonito sobre isso [num palanque recém-varrido]. Até porque nós, do lado de cá, seguimos regando ~ com esperança, suor e um certo riso debochado ~ porque se não for assim, o calor não nos salva, só frita.
