Quando o sinal fecha, dezenas de motos pipocam à frente e a maioria delas é barulhenta em seus escapamentos modificados. Assim como abelhas pousando na colmeia, elas ~ as motos ~ se revezam ansiosas pela largada ao sinal verde; muitas não esperam e disparam ainda no amarelo, a cor da colmeia, como se perseguissem um néctar invisível.
Dentro do carro, reina um silêncio macio ~ só o ar-condicionado sussurra ~ e o ar se veste de um perfume de talco que vem dela. Minha passageira, às oito da manhã, é dona Yuki. Ou melhor: batchan Yuki. Ou seria batiam, obaachan? A pronúncia, descubro, é um território de afetos e tropeços.
Conto a ela minha alegria por acompanhá-la ao café da manhã em homenagem aos noventa anos de sua amiga. Ela agradece com um sorriso, devolvendo-me um pensamento simples e profundo: “há mais vida além das paredes da minha casa, e eu não posso deixá-la escapar sem vivê-la.”
Enquanto isso, do lado de fora, o trânsito pulsa. Abelhas de aço zumbem, o sol ricocheteia nos retrovisores das motos, compondo um enxame metálico, apressado e impaciente.
Diante da minha tentativa de brincar dizendo que “sou batchan também” ~ pensando nos meus netos ~, ela logo me corrige com a delicadeza que só quase noventa anos concedem: avô, em japonês, é ditchan. O “tchan”, afinal, é o que importa: sufixo de afeto, sílaba que suaviza qualquer palavra.
Concordo e acrescento que estamos sempre aprendendo, que a idade não é doença capaz de nos privar da alegria de descobrir algo novo. Ela sorri e rebate: a idade também não é a cura. Rimos juntos, por um bom trecho do caminho. Até que as abelhas se dispersam no amarelo, ao primeiro vislumbre de verde, e seguimos, cada qual burilando seus talentos familiares ~ poucos, é verdade, mas suficientes.
Ela fala da filha, que não lhe deu netos, mas em contrapartida encheu a casa de gatos e de fotografias da Europa: Praga, Barcelona, uma ponte em Paris. Viagens que repete a cada três meses, sempre a trabalho, ainda sem tempo para lhe oferecer ao menos um sansei. Não é uma queixa, apenas constatação geográfica: o mundo encolheu, virou parede de fotos, enquanto a casa repousa em silêncio.
Eu a escuto e aceno, no mesmo instante em que tento negociar espaço com um blazer apressado, desses que parecem acreditar que a rua lhes pertence.
São quinze minutos de corrida ~ que mais parecem quinze de marcha lenta, com pausas calculadas, como quem ensaia os passos da vida ~ até a casa de sua amiga. Ali, na janela, uma senhora da mesma idade nos espera com um sorriso de mil dobras, cada ruga guardando histórias que o tempo não conseguiu apagar.
Ah, como eu queria estar presente nesse café da manhã! Desabafo com meu fiel volante, que me guia pelas ruas de São Paulo e, de todos, é o único que me entende.
Na despedida, tomo fôlego e arrisco um tímido japonês, compondo a frase inteira na mente antes de soltar: arigatou, batchan Yuki. Ela responde com doçura, já com a mão na maçaneta: me chame de Izabel, somos amigos agora. E, como estamos no Brasil ~ esse país onde tudo se mistura, se enlaça e se azeita num jeitinho ~, agradeço de novo em português, rindo sozinho dentro do carro: obrigado!
Fico ali, olhando dona Izabel ~ ex-batchan Yuki ~ desaparecer em mais uma manhã dos seus quase noventa anos. Eu, um ditchan sem netos por perto, me preparo para enfrentar o enxame do dia. E penso que a vida é exatamente isso: um semáforo que abre e fecha, um zumbido que vai e vem, e nós, sempre no meio, tentando acertar o nome das coisas, errando… mas sendo chamados de amigos, mesmo assim.